Histórias de quem veleja

O encalhe do veleiro francês

Por Marcelo Visintainer Lopes

Instrutor de Vela      

Escola de Vela Oceano

Travessia Recife – Salvador.

Eu e alunos (formados e formandos).

Sairemos do Recife amanhã logo após o café (ao amanhecer).

As primeiras 24 horas serão de puro desconforto e por esta razão peço atenção redobrada para a alimentação e atitudes em geral.

Preparem-se para o contravento e para uma grande agitação marítima!

Evitem entrar na cabine para pegar bobagens e deixem na mão tudo o que forem precisar de mais imediato (protetor, fotografia, casaco, boné).

Esta foi a fala inicial…

Antes de iniciar qualquer travessia (não importa a distância) eu sempre abordo os temas segurança, alimentação, bons hábitos e consumo de álcool.

O veleiro encontrava-se fundeado dentro da barra para uma noite de ambientação. Preparei o jantar e avisei que iria descansar, mas antes pedi encarecidamente que todos dormissem cedo.

Algo me dizia que não iria rolar… Estavam muito eufóricos com a travessia.

Recém haviam embarcado e eu sabia que a ansiedade não deixaria ninguém descansar direito.

Boa alimentação, uma boa noite de sono, ambientação ao balanço e a não ingestão de álcool são as melhores coisas que a gente pode fazer antes de iniciar uma velejada em mar aberto.

Embora eu sempre aconselhe o melhor, às vezes não funciona!

Acham que é exagero meu e pagam para ver na prática.

Minha principal recomendação/preocupação foi em relação ao álcool.

Muita gente leva combustível extra escondido nas malas… kkkkk

Bebidas alcóolicas causam enjôo com mais facilidade e a previsão do mar agitado poderia ser fatal para o estômago.

Deitei e dormi reto até o amanhecer.

Durante a noite eu não percebi nada de diferente (nenhum barulho e nenhum comportamento inadequado), mas quando acordei para preparar o café da manhã me deparei com “algumas” garrafas vazias (destilados) dentro da pia.

Logo pensei: FFF (aquele palavrão feio).

Olhei para os lados e não vi tripulantes dormindo; vi apenas corpos jogados pelos cantos…

Beleza, eu bem que avisei!

Agora tenho o direito de tocar o terror mesmo!!

Gritei: o café já está servido e em seguida partiremos!

Assim que viramos a barra e o barco começou a subir de proa nas ondas, notei as caras de pavor (estômagos de pavor).

O primeiro candidato desceu rapidamente ao banheiro com alguma desculpa esfarrapada e quando voltou os demais começaram a cair em sequência.

Resultado: desmaiados e amontoados no cock-pit e eu sem tripulação!

Cruzei pelo Cabo de Santo Agostinho e pelo Porto de Suape sem nenhuma pretensão de parar, mesmo sabendo que abrigo, comida e aquecimento seriam as melhores medicações.

Como eu estava P da vida com o descumprimento das orientações, fiz valer o planejamento inicial de não realizar paradas.

Eu tinha outra tripulação completa para embarcar em Salvador e não queria me atrasar.

As condições seriam mais favoráveis a partir do segundo dia e eu sabia que mais cedo ou mais trade eles melhorariam.

O problema é que eu estava bem cansado com mais de 10 horas de cockpit e o disjuntor estava querendo cair.

A região possui muita atividade pesqueira e qualquer descuido poderia me levar para cima de uma rede ou de uma embarcação.

Decidi buscar um local para descansar.

Ao sul de Porto de Galinhas (7 milhas) existe uma ilha chamada Santo Aleixo.

Ela está localizada em frente à foz do Rio Sirinhaém, no município de mesmo nome.

A ilha oferecia o abrigo que eu necessitava, porém não havia resolução suficiente na carta náutica para realizar a aproximação.

Fui seguindo o rumo das águas de tom azul mais escuro, que são as mais profundas, já que dava para perceber bem o contraste entre os tons de azul mais claro.

Consegui abrigar e escolher um bom ponto de ancoragem sem maiores problemas.

As ondas desapareceram e o mar ficou bem calmo.

Com aquela calmaria toda meus tripulantes foram voltando à vida como ursinhos acordando… Kkkkk.

Fui para a cozinha preparar o jantar de recuperação e a galera se motivou a dar um mergulho.

Ficaram ali pela popa relaxando e decidiram nadar até a ilha que estava a uns 200 metros.

Percebi que eles chegaram exaustos na praia e decidi aproximar o barco para facilitar o retorno.

Lancei o ferro uns 50 metros mais próximo e esperei que retornassem.

Enquanto eu os esperava notei que a quilha deu uma tocadinha em algo mais duro do que areia e gritei para acelerar o retorno.

Com todos a bordo, comecei a suspender o ferro e ao iniciar o deslocamento a vante percebi que a quilha estava acomodada entre pedras.

Não ia nem para frente e nem para trás.

Só havia uma solução mais rápida e eficaz: adernar pela adriça e rebocar.

Logo que fundeamos eu vi a presença de barcos de pesca fundeados bem próximos à praia e pensei em pedir ajuda a eles.

Nadei até a ilha e acionei dois barcos que prontamente se colocaram à minha disposição.

Dois barcos trabalhando em sincronia produziriam o efeito que eu desejava e com esforço zero.

Peguei carona com um deles e fomos até o veleiro.

Expliquei aos dois como seria feita a manobra e após o entendimento demos início ao desencalhe.

Pela adriça do balão (e mais 50m de cabo extra), coloquei um dos barcos pelo través de boreste.

O outro barco aguardava com um cabo de reboque amarrado na minha proa.

Ok. Todos prontos?

Ao meu comando: barco de boreste marcha a vante lentamente e barco de proa aguardar.

Coloquei os tripulantes no mesmo bordo para ajudar na adernação e quando a borda começou a tocar na água, dei comando para o barco de proa: a vante lentamente.

Deixei claro para toda a tripulação que a manobra seria uma verdadeira aula de desencalhe e uma excelente oportunidade para aprender o que fazer em situações como aquela.

Se o fundo fosse de areia bastaria utilizar o próprio peso da tripulação, mas aquele caso era diferente.

Se houvesse só um barco de reboque eu o teria colocado no través e dali adernaria e puxaria para fora da pedra ao mesmo tempo.

Uma âncora levada bem longe pela proa faria o mesmo papel do segundo barco, bastando apenas iniciar a puxada pela catraca após a adernação ocorrer.

Encalhes em fundos de areia ou lama são relativamente fáceis de sair, já que não estamos preocupados em arrastar a quilha no fundo.

Em fundos mistos de areia e pedra (que era o caso) ou em fundos só de pedra ou coral, todo o cuidado e zelo com o barco é pouco!

Em menos de um minuto o barco estava solto e com a quilha intacta.

A cena mais engraçada da manobra foi quando eu estava lançando a adriça do balão para o menino do barco de boreste.

Quando eu descrevi a manobra e ele percebeu o tamanho da responsabilidade, ele gritou: arrume uma pessoa mais experiente!

Aquela frase de receio, combinada como pitoresco sotaque do nordeste foram a cereja do bolo da manobra.

Eu o tranquilizei dizendo: calma, eu vou ajudar você na manobra.

Fique tranquilo!

Foi muito divertido (sem sarcasmo) ver a ansiedade daquele jovem pescador frente a uma ação daquelas.

Era a primeira vez que ele fazia aquilo e com certeza ficou com medo de quebrar o mastro, sei lá…

Este tipo de manobra deve ser feita pela adriça que fica na altura do estai de proa.

Se a mastreação é ao tope, qualquer adriça serve, tanto do grande como genoa ou balão.

Quando a mastreação é fracionada devemos usar a adriça do balão ou da genoa, pois do contrário a ponta do mastro pode torcer ou quebrar.

Isto quer dizer que não devemos utilizar a adriça do grande!

Nunca esqueça deste detalhe!

Para o nosso deleite e comentários futuros o episódio ficou conhecido como “O Encalhe do Veleiro Francês”!

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